A problemática do suicídio e da automutilação

Automutilação – sofrer para viver - Oficina Psicologia
Ana Paula de Oliveira Gomes (*)
(*) Jurista, escritora e professora nordestina brasileira. Mestra em Direito Constitucional. Doutora em Filosofia – Estudos da Paz. Conselheira Substituta do TCE/RN. Contato: @engenhodeletras


Estas linhas se propõem a discorrer sobre a problemática do suicídio/automutilação em contraponto à vida humana (pressuposto de direito). Os dramas contemporâneos - no contexto de uma sociedade (supostamente) globalizada, plural e de riscos - aproxima as diversas aplicações do conhecimento (há que ser crítico porque, nele, há implacável crise: conhece-se, somente, o que o objeto simboliza). Quanto ao fato, inexiste utopia. O conhecimento implica desconhecimento. Essa crise é dialética.

Antes de a vida ser interesse juridicamente tutelado, a vida condigna é pressuposto lógico para o exercício de qualquer direito. Sem vida, inexiste expectativa de direito. O nascimento com vida inicia a personalidade humana. A morte a extingue. O corpo, juridicamente, é tratado como coisa - não obstante, o ordenamento pátrio tipifique delitos contra o respeito aos mortos dos arts. 209 ao 212 do Código Penal: impedimento ou perturbação de cerimônia funerária; violação de sepultura; destruição, subtração ou ocultação de cadáver; vilipêndio a cadáver. Os tipos penais são justificados como relevantes medidas de preservação de valores éticos, de solidariedade e piedade sociais. 
  
No início do ano de 2019, foi publicada a Lei 13.819/2019 com o escopo de instituir a política nacional de prevenção da automutilação e suicídio, a ser implementada pela esfera nacional de poder em regime de cooperação com os entes subnacionais. Conforme informação obtida no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos:

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), de 5,0 a 9,9 mortes por 100 mil habitantes no Brasil tiveram o suicídio como causa no ano passado. “Estima-se que, anualmente, a cada adulto que se suicida, pelo menos outros 20 possuem algum tipo de ideação ou atentam contra a própria vida. O suicídio representa 1,4% das mortes em todo o mundo. Entre os jovens de 15 a 29 anos, é a segunda principal causa de morte”, afirmou a OMS sobre os dados referentes a 2017. 

Tão preocupante quanto a problemática do suicídio é a questão da automutilação (ou autolesão ou autoagressão). Reconhece o governo federal que as crianças, adolescentes e jovens se encontram entre os grupos mais suscetíveis. Observa a titular da pasta: “fatores como bullying e cyberbullying, abandono, abusos físicos e sexuais, além de famílias desestruturadas, podem contribuir para o aumento dos índices de suicídio e automutilação”. Automutilação implica conduta em que a pessoa agride o próprio corpo, a exemplo de bater em si. Trata-se de forma de alívio a dores emocionais. 

Momentaneamente, até pode trazer liberação da tensão. Contudo, o sentimento subsequente é o culpa, ocasionando círculo vicioso de emoções dolorosas e vergonha. Em casos assim, é preciso encontrar auxílio de profissional especializado em saúde mental. 

A temática é relevante, notadamente, pela dor advinda das sensações de desesperança, raiva, aflição, desespero que, por seu turno, podem ensejar isolamento social, automutilação e suicídio em qualquer idade, sexo e condição social. Trata-se de questão de saúde pública e de acolhimento com o próximo. É preciso não julgar, importar-se com o semelhante. Não se deve esperar para ver.

Dialogue-se sobre o assunto. Já advertira Santos (1956, p. 14): “[…] nossa inteligência, em vez de unir, incluir, ela separa, desune, exclui […]”. Segundo o filósofo, o ser humano cava abismo quando já o tem dentro de si. O abismo surge da desesperança, de não saber lidar com decepções e da intolerância de quem se esperava acolhimento.

O homem desesperado precisa encontrar o que não possui. Sua crença é o desespero, o que aprofunda o abismo. A desesperança traz a inversão dos valores mais caros. O sujeito precisa compreender o estado de abismo e resgatar-se enquanto sujeito. Nesse diapasão, prescreve a Lei 13.819/2019: 
Art. 4º O poder público manterá serviço telefônico para recebimento de ligações, destinado ao atendimento gratuito e sigiloso de pessoas em sofrimento psíquico.
§ 1º Deverão ser adotadas outras formas de comunicação, além da prevista no caput deste artigo, que facilitem o contato, observados os meios mais utilizados pela população. [...]

Além do serviço telefônico, deverão ser adotadas diversas formas de comunicação facilitadoras do contato, a exemplo das redes sociais. A lei disciplina que os casos suspeitos/confirmados de violência autoprovocada são de notificação compulsória por parte dos estabelecimentos: de saúde públicos e privados às autoridades sanitárias; de ensino públicos e privados ao conselho tutelar (em tratando de crianças e adolescentes). 

A lei caracteriza a violência autoprovocada como: o suicídio consumado; a tentativa de suicídio; o ato de automutilação, com ou sem ideação suicida. A partir de 29 de julho de 2019 – data de vigência da Lei 13.819/2019 – a autoridade policial, ao investigar a suspeita de suicídio – deverá comunicar a conclusão do inquérito à autoridade sanitária sobre o que apurar relativamente às circunstâncias do óbito. 

Registre-se que, em 27.set.2019, o Tribunal de Contas do Rio Grande do Norte (TCE/RN) promoveu “Mesa Redonda” para discutir publicamente a questão da prevenção ao suicídio, bem como os cuidados com a vida. A abordagem foi transdisciplinar. Primeiro, falou a médica psiquiátrica - Dra. Luíza de Medeiros.
Observou que, para Freud, a morte consiste em algo abstrato. Com o suicídio, o que se deseja é cessar a dor, angústia. Recordou a médica mais 800.000 casos de suicídios no mundo. Em termos de Brasil: a) há uma morte por suicídio a cada 45min; b) o Brasil é o 73º no ranking internacional e o 8º em números absolutos de mortes por suicídio segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS).

Entre 2000 e 2012, apresentou dados para demostrar o recrudescimento em 10,4% no índice de mortes por suicídio no Brasil, sendo mais de 30% em jovens. O Rio Grande do Sul é o estado com a maior taxa de suicídio no país. Advertiu a psiquiatra que tudo, em relação ao suicídio, é multifatorial.

Conforme suas pesquisas, 90% a 97% dos casos estão ancorados em transtornos mentais, a exemplo de transtorno bipolar e quadros depressivos. Explicou ser a depressão sofrimento significativo e/ou prejuízo funcional a distorcer a realidade. Os pensamentos suicidas abrangem tristeza/vazio e/ou perda de prazer pela vida. Advertiu sobre os principais fatores de risco: insônia, desespero, desesperança, uso de substâncias psicóticas, acesso a meios letais e tentativas prévias, sendo o suicídio – por enforcamento – significativo no Brasil.
O que fazer? - Propôs reconhecer, ouvir e conduzir. Reconhecer frases de desespero; ouvir com empatia e respeito (sem julgamentos/interrupções); conduzir ativamente ao auxílio de psiquiatras, psicólogos ou ao disque 188 (número nacional gratuito 24 h).

A médica recomendou a conferência do colega médico psiquiatra, Prof. Dr. Neury Botega, evento esse disponível gratuitamente no YouTube desde 2018. O pesquisador investigou o comportamento suicida (da biologia ao desespero). Para compreendê-lo, teceu panorâmica histórica ocidental.

Na Antiguidade Greco-Romana, explanou sobre a tolerância com o suicídio – visto como ato de liberdade. Atribuiu a Sêneca (65 d.C.) a seguinte reflexão: “Se o corpo se torna inútil a qualquer tipo de utilização, por que não libertar a alma que sofre em sua companhia?”. Na Idade Média, em razão da tradição cristã, começou-se a condenar o ato suicida. A partir da modernidade, é encarado como dilema. 

No século XVII, John Donne discorreu que o homicídio de si mesmo, nem sempre, é pecado. Sua obra foi publicada 18 anos após sua morte (a pedido do próprio autor). Ainda no século XVII, Robert Burton escreveu Anatomia da Melancolia. Segundo Botega, Burton consignou: “se há inferno neste mundo, ele se encontra no coração do homem melancólico”. Por outro lado, o suicídio é encenado nas obras de Shakespeare mediante dilema desvinculado de dogmas religiosos.

No século XIX, ao citar Esquirol, o professor discorreu que “O homem só atenta contra os seus dias no meio do delírio”. Por oportuno, recordou Durkeim por haver estudado sociologicamente o suicídio como fator social. No século XX, Camus escreveu sobre o mito de Sísifo e registrou que “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio”. Freud estudou o luto, a melancolia. Aaron Beck investigou a desesperança, o cognitivismo e concluiu o suicídio não ter a ver com a morte, mas com cessar a dor. Trouxe o conceito de ato-dor: quando a dor não é processada em palavras e sentimentos.

No século XXI, ocorre o suicídio assistido mediante autorização judicial no Oregon/EUA. O número de pedidos, segundo o professor, aumenta a cada ano. Na Inglaterra, o médico pontuou estar a população dividida em relação ao suicídio assistido. A função legislativa de lá decidiu não autorizá-lo, pelo menos, por enquanto. 

Advertiu o psiquiatra que o suicídio assistido é diferente de eutanásia. Esta, mesmo entre os países onde o suicídio assistido é permitido, a eutanásia é condenada. Para o pesquisador, é muito difícil assegurar que a morte foi por suicídio.

Óbitos com intenção indeterminada são relevantes. Por isso, tudo leva a crer que os dados da OMS estejam subestimados. No Brasil, de acordo com as informações obtidas pelo estudioso no Ministério da Saúde, os números por suicídio aumentaram em adultos e jovens.

Retomando o evento do TCE/RN, após a fala da médica psiquiatra, refletiu a psicóloga Dra. Jordana Celli. Trouxe a problemática de sobreviver à dor. Detalhou os aspectos multifatoriais que permeiam o suicídio: fatores biológicos, sociais, econômicos, culturais, físicos e psicológicos. 

Ato contínuo, o pastor Rubens Amâncio, coordenador da ação voluntária Sentinelas na Ponte Newton Navarro (Natal/RN), explanou sobre a experiência de tentar coibir suicídios mediante palavra amiga. O grupo congrega voluntários de distintas religiões e ateus, que se revezam 24 h, para dirimir pessoas de se suicidarem na ponte. 

Chama atenção do Poder Público ao fato de inexistir qualquer proteção (parapeito) em uma ponte que custou milhões de reais aos cofres potiguares. Afirmou a conduta omissiva chegar a descumprir preceito bíblico (Levítico). Segundo seus cálculos, já atendeu mais de 500 pessoas lá. Advertiu sobre o Efeito Werther, ou seja, a propósito do fato de ser o suicídio “contagioso”. Antes de abrir o evento a perguntas da plateia, Elizabeth Trindade, espiritualista, abordou aspectos holísticos do problema. 

A partir, agora, do discurso filosófico do porte de Mário Ferreira dos Santos, infere-se que a vida é permeada de crises, algo natural à existência da humanidade. Nas palavras do próprio filósofo (1956, p. 52): “O eu, a personalidade, surge de um separar-se constante, de uma crise que se abre entre o indivíduo e os seus semelhantes e o meio ambiente”. Portanto, a crise surge em todos os momentos do devir, já que a vida é um constante escolher, preterir e preferir. Todavia, crise não é abismo. Este sim fator condutor do desespero. 

Em termos de Brasil hoje (em síntese): a partir de 29 de julho de 2019 – data de vigência da Lei 13.819/2019 – a autoridade policial brasileira, ao investigar a suspeita de suicídio – deverá comunicar a conclusão do inquérito à autoridade sanitária sobre o que apurar relativamente às circunstâncias do óbito (relevante em termos de direcionamento de políticas públicas em favor da vida condigna). 

O ordenamento passou a tratar a temática como questão de saúde pública. Não obstante, é preciso sensibilizar socialmente para a necessidade de acolhimento do próximo. É preciso não julgar, mas se importar com o semelhante. 

A partir do estudo da Filosofia de Crise, de Mário Ferreira dos Santos, livro publicado em 1956 e deveras atual na suposta modernidade (nada) reflexiva, depreende-se que o ser humano precisa acreditar em uma promessa de vitória seja lá qual for. Havendo essa crença, não há razão para desespero. Cada um, portanto, precisa encontrar o caminho prometido. 

Desde Einstein se sabe que a sabedoria reside em ser simples. Porém, sem incidir na simplificação reducionista. Os grandes dilemas da vida diária envolvem o sim e o não. Monossílabos poderosos. O binário precisa ser refletido no tempo certo. Como seres finitos, só se conhecem os fatos segundo a capacidade de conhecer. Conhecer a totalidade das cousas só caberia a um ser infinito.

Foto: Oficina de Psicologia
REFERÊNCIAS
DOS SANTOS, Mário Ferreira. Filosofia da crise. São Paulo: Logos. 1956.
< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13819.htm>. Acesso em: 19.jun.2019.
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 6.ago.2019.
<https://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2019/abril/criancas-adolescentes-e-jovens-estao-entre-os-grupos-mais-suscetiveis-ao-suicidio-e-automutilacao-apontam-especialistas>. Acesso em: 6.ago.2019.
<http://www.tce.rn.gov.br/Noticias/NoticiaDetalhada/3804>. Acesso em: 2.out.2019.
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2 Comentários

  1. Esse assunto precisa ser enfrentado. Parabéns ao governo federal pela sensibilidade. Desde 2019, o Brasil trata da problemática em rede de apoio.

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  2. Gente, o vídeo referido no texto - do Prof. Neury Botega - é imprescindível à compreensão do que intencionei explanar sobre o tema proposto.

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