Pena de morte e antinomia.

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A propósito dos acontecimentos que evocam cenas barbáricas das quais o brasileiro, pelo visto, vai absurdamente se acostumando, deve-se compreender que nenhuma lei interna ou sistema administrativo ou de poder vale mais que os Direitos Humanos, cuja natureza jurídica é supraestatal e supraconstitucional. Radica no plano da Norma Fundamental de todo e qualquer Estado dito soberano. 

A pena de morte, que tantos aclamam como a solução para a violência, desse modo, é uma violação aberta e desejada à Doutrina Universal dos Direitos Humanos e, por isso, merece ser censurada pela consciência ética que preside o princípio da perpetuação da humanidade sobre a face da terra. Vida e morte são reservas que valem pela sua própria natureza, e nunca pela orientação subjetiva de múltiplas ideologias que têm, comumente, a esdrúxula pretensão de substituir a razão e até mesmo a ordem natural das coisas. A Sagrada Escritura já preconizava desde tempos multimilenares milenares o seguinte: "A Deus o que é de Deus, a César o que é de César!".

Além do mais, heroísmo ou marginalidade são espécies comportamentais que não se consideram na análise substancial dos Direitos Humanos. Esses Direitos são universais, estão acima das Constituições e valem pela sua substância ínsita à condição humana de todos e de cada um, que vamos, aliás, inafastavelmente, aos "sete palmos" abaixo da superfície ou seremos acomodados numa gaveta de concreto de todo jeito, mais cedo ou mais tarde. Somente então, seremos julgados à Eternidade! 

Outrossim, a pena de morte, sobre inviabilizar a proposta legal de ressocialização de agentes do crime, é uma prova inequívoca da falência do Estado em controlar os desvios do comportamento dos cidadãos, quer em tempo de paz ou em tempo de guerra. A vida é um dom insubstituível. Qualquer que seja esse Estado, ele antes se condena, ao eliminar, violenta e oficialmente, a quem quer que seja. É evidente que a pena de morte é uma contradição terminal, um argumento antinômivo quer da Ordem Jurídica universal quer do sistema de normas morais que informa a vida social em aspectos insubstituíveis com a solidariedade e a compaixão. A hipótese está em franco desacordo com a Doutrina Universal dos Direitos Humanos, por impossibilitar a proposta de ressocialização para os condenados. Essa supressão não reúne o menor sentido, ainda que o objeto ressocializador pareça distante ou difícil de resultar plenamente exitoso.

Tecnicamente falando, a impossibilidade de ressocialização de delinquentes, de fato, é hipótese que não existe objetivamente e nem o Direito universal a avaliza como categoria jurídica ou componente do Penalístico, desde o advento da obra "Dos Crimes e das Penas", de Cesare Beccaria, tanto aqui quanto em qualquer outra parte. 

Convém anotar que seja quem for o suspeito, seja o que tiver feito ou mereça, sua dignidade, contudo, exige respeito, pois é exatamente a mesma de todo o ser humano, indistintamente. A ressocialização é corolário da lei penal, não exatamente um atributo dos réus.

Se esse novo paradigma não fosse institucionalizado desde então, o Estado Moderno seria como que um "Estado terrorista", viveríamos a "Lei da Selva" de um modo tecnologicamente sofisticado, hoje em dia. Daí para a hecatombe social seria um simples estalar de dedos. As aparências vai sendo mantidas a duras penas em países como nosso, mas o cenário continua de mal a pior. 

Descendo a minudências, o que falta mesmo é vontade política para garantir igualdade para todos, o que só será possível atingir com um combate eficaz e determinado contra a corrupção sistêmica que açambarcou o Brasil e o tem impedido de florescer e de resgatar as suas próprias riquezas. 

Ora, entre nós superabunda o egoísmo. Enquanto isso, o corporativismo tosco que vem dos tempos coloniais mantém extratificada a sociedade brasileira com inversões de ordem, distorções tremendas, quebra obtusa de paradigmas e tantos privilégios sem causa sem solução de continuidade. 

Com efeito, as raízes da crise social em que vivemos por aqui são multifacetadas, formativas, e não admitem enquadramentos simplistas, reducionistas, superficiais. Essa atitude não seria inteligente, de modo algum, mas é o que se costuma levar adiante para a construção de enredos simulatórios, próprios da democracia de fachada que temos por aqui na qual poucos são capazes de ver as coisas como as coisas são, realmente.

Diferenças abissais sempre geraram no plano da vida social as mais diversas formas de dissensão. A falta de 'feedback' educacional e moral (obtidos na família ou providenciados pelo Estado de bem-estar), sobretudo entre os menos afortunados, agrava essa atmosfera, elevando-se a ideia que comumente alinhavamos, como classe média, de criminalidade urbana e também no campo. Muitas delas nem sequer chegam a ser investigadas, e deveriam ser investigadas pelas mesmas razões de Justiça que naturalmente explicam tanta fúria, quase apologética, observada hodieramente contra os que erram e são normalmente privados da sorte econômica e social. Refiro-me aos acusados comuns, ocasionais. Com relação à macrocriminalidade, porém, o Estado brasileiro tem se esmerado em um garantismo estéril, dissentido da evidente vontade de Nação.

Com efeito, constata-se essa evidência histórica pelas populações carcerárias, de um lado, e pelas estatísticas de crimes irresolvidos, além da própria violência urbana e rural. Tudo isso causa sem dúvida, enormes perplexidades ao espírito e uma não menos intensa sensação de impotência da parte da população desassistida e perplexa. Daí para o fomento às imagens mais primitivas como pano de fundo para soluções imaginárias é um salto relativamente pequeno, e seguramente descuidado. Quanto a isto, certas proposições traduzem simples absurdos éticos e abominações cognitivas, nada obstante a inteligência costumeira dos críticos. Eles omitem, via de regra, por necessidade retórica, que há muitas outras formas de criminalidade que nem de longe passam, ordinariamente, nas considerações de alguém que habita a classe média (peleguismo social), sobretudo a classe média alta (domínio econômico das superestruturas), como argumento de Justiça, sempre sectário. 

Nesse prisma não pode estar contida qualquer possibilidade de abordagem panóptica que projete a visão dos objetos conforme as suas inúmeras perspectivas, e nem proveja suas soluções com inteira razoabilidade. Hoje e desde o advento da Cristandade, razoabilidade alguma se impõe eticamente sem a perfeita observância da Doutrina Universal dos Direitos Humanos. É que não se justifica que, a pretexto de combater o crime, sejamos criminosos também. Isto é uma abominação ética absolutamente inconciliável com os tempos contemporâneos em que vivemos. Simples assim!

Em que pese as boas intenções de quem se indigna, com razão, em face da violência e sem querer de nenhum modo justificá-la, é claro que se deve discordar desse discurso de ódio e da intolerância que agrava o fosso social entre as classes e valoriza a fiscalização estatal como milícia de alguns. Isso está muito errado!

A humanidade deve conduzir-se à frente e não em via regressa que a aproxima do seu primitivismo.

Ao fim: aqueles que estão desde sempre estabelecidos como formuladores das políticas públicas associadas claramente fracassaram e se revelaram imprestáveis aos ditames da Nação. No entanto, todos eles insistem em se manter onde se encontram, em seus postos políticos e administrativos de grande evidência e implicação, ainda que sob o custo da infelicidade da Pátria, aproveitando-se sorrateiramente da falta como que absoluta de esclarecimento funcional e atitudinal da sociedade brasileira. Já é muito bom que possamos, sem subterfúgios, esquadrinhar as raízes de nossas próprias mazelas. Resolvê-las, entretanto, só depende da Nação. Continuemos, assim, trabalhando e fazendo a nossa parte nessa tarefa inadiável de restauração histórica do Brasil.

Ainda, o estado de selvageria a que desgraçadamente chegaram alguns indivíduos sempre tem causa. Se essa causa fosse evitada, o estado de selvageria igualmente seria evitado, ao menos em grande medida. Há de todo modo fatores imponderáveis para o fenômeno da criminalidade, os quais perderiam consistência prática e potencial criminógeno, se o Estado cumprisse bem e fielmente seus investimentos e responsabilidades na eliminação das desigualdades sociais. Com efeito, não parece justo de modo algum inverter a a lógica dessa responsabilização, haja vista a recorrência e a gravidade dos efeitos observados no "socius". Um certo clima de crescente anomia vai tomando corpo no tecido social e as novas leis, ao contrário do que deveriam regular e de como regular as condutas criminosas, parecem alargar, paradoxalmente, o espectro de uma leniência intrínseca no que se refere à repressão criminal. 

Pode-se concluir, então, que a pena de morte simplesmente não é dialógica; ela é, na verdade, política e, por isso,  arbitrária e autoritária, desconstrói o penalístico e invalida a humanidade, não o criminoso, em particular. É,como acima mencionado, a demonstração cabal da falência do Estado para cumprir sua responsabilidade institucional de manter a paz social no âmbito de seu território. É, em síntese, a suprema manifestação do anti-Direito. A propósito, tão "legítima" quanto as decapitações do "Estado Islâmico", ou os assassinatos que se perpetram nos campos e nas cidades brasileiras pelo motivo da delinquência. 

Todo esse problema, portanto, é lógico e para enfrentar a lógica há de desespiritualizar-se o intérprete. A isenção atitudinal (diversa do "isentismo") é essencial para a construção de juízos abalizados nessa matéria. Trata-se de uma postura básica e elementar na abordagem epistemológica de todo fenômeno social, por definição complexo, mas não escamoteável por qualquer tipo de conveniência política. Engana-se quem acredita que a eliminação do "selvagem" elimina a selvageria, se permanecem ativados os mesmos fatores sociais negativos que causam frustração e falta de perspectiva. Sobre isto, a lição de Santa Madre Tereza de Calcutá: "Seja fiel nas pequenas coisas, porque é nelas que repousa a sua força."

Outra coisa, porém, é o legítimo direito de defesa próprio, alheio ou socialmente considerado, que promove a vida dos vitimados da violência atual ou iminente, nos termos da normatização clássica prevista pela Ordem Jurídica para o Instituto. 

Nada obstante e desse modo, não é possível conformar-se com a pena de morte, seja ela oficialmente executada ou decorra da violência urbana ou rural, formas de criminalidade que têm de ser evitadas e, no limite, reprimidas exemplarmente.

Que Deus tenha misericórdia de todos nós!

Dr. Roberto Wanderley Nogueira
Juiz Federal
Professor de Direito da UFPE

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3 Comentários

  1. De fato, a pena de morte encontra inexorável óbice à vedação ao retrocesso.

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  2. Dia desses os pais de um jovem assassinado deram um tapa na cara do assassino do seu filho, sob a forca em que seria executado, e retiraram a corda do seu pescoço. Trata-se de um rito de comutação da pena capital aplicada a alguém em determinados países regidos pelo fundamentalismo islâmico.

    Na sequência, a cereja do bolo: as mães respectivas se abraçaram em pranto, porque elas sabiam de fato o que estavam a sofrer e o que tinham de fazer diante de um cenário tão trágico quanto aquele.

    Mais do que nós outros aqui, elas tiveram alteridade, se colocaram no plano uma da outra e de seus respetivos filhos. Deram uma lição para a humanidade. O episódio aconteceu no Irã, um dos países que mais executam oficialmente criminosos no mundo.

    Convém pensar nesse gesto de grandeza e concórdia, antes de louvar a penalidade capital contra quem quer que seja.

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