Pro hominem

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De acordo com um parâmetro científico assentado em 1827 por Karl Ernest von Baer, pai da moderna Embriologia, ficou descrito que o desenvolvimento humano inicia-se na fertilização, a dizer: quando um espermatozóide se une a um ovócito para formar uma única célula, o zigoto: 'De ova mamalium et hominis generis'. Esse achado científico exclui um avelhantado sofisma que reclama dos cristãos não interferirem nos negócios do Estado laico, o qual, no entanto, não deve ser tomado como símbolo de autoridade absoluta (tirania).

Além disso, a laicização do Estado contemporâneo, justificado em face da Doutrina dos Direitos Humanos e da solidariedade universal, não exclui o fundamento moral contido na ordem jurídica por ele encerrada. Isto significa que, por maior que seja a inflexão da lei humana sobre os aspectos fundamentais da vida em sociedade (que a Doutrina Cristã evidentemente sacraliza por outro tanto), nela estará sempre presente um núcleo universal que não se pode negar. É também ideológico, dir-se-ia mesmo especulativo, imaginar que o sofrimento de parir uma criança malformada seja maior ou menor do que o sofrimento que decorre da interrupção artificial e, pois, violenta, de uma tal gravidez. A vida humana não tem parâmetros de objetivação. E nem se presta a ser submetida a juízos comparativistas. Ela simplesmente o é, e nisso consiste ser digno o bastante para merecê-la, racionalmente falando.

O esquadrinhamento da questão dentro de balizas estritamente religiosas ou com alguma carga de religiosidade, exclui a apreciação da natureza mesma das coisas que, nesse fenômeno, se intenta substituir pelo conforto pessoal da mulher, como se isso fosse atributo de sua dignidade e autossuficiência. Não é! Esse é o fato singular a cogitar na espécie: pode a conveniência de uma mãe falar mais alto do que o direito à vida do nascituro, ainda que malformado? Dizer que sim vai contra a Constituição, a consciência moral da sociedade brasileira e um parâmetro de regulação universal, estatuído em cláusula de Direito Internacional (Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque e internalizados no Brasil, com força de emenda constitucional [artigo 5º, § 3º], pelo Decreto Legislativo nº 186/2008) que é a vida humana, o primeiro de todos os direitos individuais. Desse modo, cogita-se de uma proibição constitucional e que, por isso mesmo, não tem como se legitimar: aborto seletivo por razão de deficiência do feto constatada mediante teste pré-natal. 

Com efeito, não há juízo de proporcionalidade com o qual se possa optar entre vidas humanas. Todas reúnem o mesmo valor empírico-jurídico que é a medida da dignidade correspondente ao direito à própria existência, mais ou menos penosa ou plena, não importa. Enfatize-se: a estranha decisão de autorizar a mortandade de nascituros malformados revela-se, paradoxalmente, no esforço de legitimação do direito de matar o semelhante, particularmente indefeso, justamente por alguma razão não tecnicamente aceitável, a exemplo do estado de necessidade, da legítima defesa ou do exercício regular de um direito proporcional ao agravo. Mesmo algumas hipóteses toleradas de prática abortiva no Brasil - terapêutica ou piedosa - são tecnicamente consideradas causas de isenção penal, não de exclusão da ilicitude (criminogênese). Por isso mesmo, Juiz algum detém o poder jurídico de “autorizar”, a priori, essas e outras práticas abortivas no país. 

A Constituição brasileira no seu artigo 5º protege a vida humana sem dela fazer acepção (assim também o artigo 10, do Decreto Legislativo nº 186/2008), como substrato empírico-jurídico a permitir o exercício de todos os demais direitos subjetivos; e não poderia ser diferente, porque qualquer outro sentido para esse preceito resultaria em conteúdo materialmente impossível diante do fato da civilização. Ali não está escrito, nem induzido, de modo algum, que a vida vale somente após o nascimento. Reporta-se apenas à Ciência Embriológica para a definição do começo da vida (dies a quo) na intrauterinidade, ou mesmo in vitro. Essa perspectiva de nascer com vida tem somente um sentido de fruição de direitos e de obrigações, resultante da personalidade jurídica, que é uma abstração. A dizer: permitir ou não o nascimento de uma criança malformada vai gerar uns ou outros efeitos jurídicos, os quais não deveriam ser adulterados em face de sua própria história e da história de seus circunstantes.

A Constituição promove a vida humana independentemente do seu estágio de desenvolvimento intra ou extrauterinamente. Apenas esse dado para encerrar toda a polêmica. Um segundo de sobrevida extrauterina é vida, simplesmente. Faz história, gera direitos, cumpre um episódio existencial que envolve uma explosão de sentimentos, ideias e vontades. Entre a vida e a morte, portanto, prefira-se sempre a vida (pro hominem)!

O desejável, pois, não é a morte de ninguém, mas a cura. Nisso reside a irresignação que não pode ser amenizada por um ato que equivale a aborto, eufemicamente denominado de interrupção da gravidez, também e principalmente quando por motivo de deficiência fetal. Ora, compreende-se a dor de uma mãe de anencéfalo, mas, todo médico sabe melhor do que ninguém que não é seguro afirmar o que comumente se afirma para justificar o padecimento de uma morte artificial, meramente anunciada, ante o fato de uma má formação genética que afeta parte do cérebro da criança que está sendo gestada no ventre materno e que teste algum é capaz de exatificar. Os povos de Esparta atiravam criancinhas defeituosas abismo abaixo. Hoje em dia, pelo visto, a crueldade chegou a requintes que dispensam até o esforço de empurrar o indesejado como dejeto. Mesmo este articulista não gostaria que sua mãe o matasse na uterinidade, ao saber que seus membros inferiores e superiores, pela razão de uma doença hereditária (Exostose Hereditária Múltipla-EHM) seriam bem mais curtos, e disformes, do que o normal, causando-lhe limitações e outra cepa de sofrimentos sociais. No essencial é a mesma coisa, pois não se pode avaliar o alcance da subjetividade humana entre não se conformar com o transtorno de braços e pernas curtos e disformes ou com o transtorno da insuficiência cerebral do próprio filho.

De acordo com um registro teórico de Adrienne Asch, "o que diferencia o teste pré-natal seguido de aborto de outras formas de tratamento médico e prevenção da deficiência é que a estratégia não tem a intenção de evitar a deficiência ou a doença de um ser humano que já nasceu ou que irá nascer, mas de evitar o nascimento de um ser humano que terá uma dessas características consideradas indesejadas." (Acesso em: http://www.rbtv.associadosdainclusao.com.br/index.php/principal/announcement/view/55)
 O aborto por motivo de deficiência fetal, desse modo, é uma atitude macabra que não pode restar escondida em frases de efeito as quais dizem tentar prevenir o sofrimento de mulheres realmente ainda imaturas para a maternidade. Mulheres, aliás, não são máquinas de procriação, não são peças industriais que só produzem manufaturados perfeitos para o mercado, pena de descarte. A reprodução humana não guarda padronização alguma. A diversidade de todos e de cada um é a própria natureza do ser humano, desenho universal da humanidade. Por causa disso, elas, as mães, são simplesmente mães. Isso deveria fazer toda a diferença para que fossem evitadas as inúmeras formas de interrupção eugênica ou seletiva da gravidez. O caso de violação aos Direitos Humanos das pessoas (e dos nascituros) com deficiência pode ser questionado em foro internacional, à luz da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinado em Nova Iorque em 30 de março de 2007, se antes disso o Congresso Nacional não resolver editar Decreto Legislativo no mesmo sentido, invalidando as decisões judiciárias que se vem enredando nesse território contra-legem.

Por isso mesmo, somos todos culpados, haja vista o nosso primitivismo e a falta de igualdade que caprichosamente cultivamos, às vezes sem a plena consciência disso. As polêmicas em torno de certos movimentos especulativos da sociedade, ou da parte de quem a manipula, traduzem um problema que resulta da angústia de saber se a Constituição vale ou não vale no Brasil. Só isso! Afinal, se não se dispõe por aqui de uma Constituição que valha realmente, todos estaremos sujeitos ao acaso e às idiossincrasias do tirano da vez que assuma as rédeas do poder, por meio de uma atuação sem referências normativas, ou manu militari. E não importa que esse papel não regulado venha a ser exercitado por um colegiado de momento (Executivo, Legislativo, Judiciário ou mesmo o poder de fato), bastando avaliar se essa atuação sufocou as expectativas de funcionamento sistemático dos poderes constituídos como um todo.

Sem dúvida, enfrenta-se o propósito de legitimação de casos potenciais de abortos eugênicos ou seletivos, à moda espartana, para dizer o mínimo. Transformar o fruto da gravidez humana em coisa ou objeto é um mal que não se pode nem mesmo qualificar, dada à intrínseca crueldade que nesse ideário se contém e já não se pode esconder. O sofrimento que supostamente se intenta evitar à parturiente não é menor do que resulta da crueldade que se sugere impor ao inocente, à sua ascendência e à humanidade por inteiro. Além disso, confundir anencéfalo com “morto cerebral” traduz uma premissa rigorosamente falsa. Sobre isso, não é desprezível lembrar que a morte é a consequência natural da vida, ainda que essa vida tenha uma pequena duração. 

O que importa considerar, de essencial, é que uma janela de precedência muitíssimo perigosa acabou de ser aberta ao futuro da humanidade que habita o território brasileiro. 

Ao fim, entre a desgraça de uma gravidez de fruto deficiente ou indesejado, o reconhecimento de toda essa dor e o suposto direito de escolher sobre o que fazer com esse fruto humano vital segue-se uma grande diferença entre pólos que jamais convergem, pois refletem barreiras atitudinais que são o princípio da exclusão ainda ativado em nossa quadra, em que a luta pela inclusão social parece mesmo retórica. As dores do mundo são contingências objetivas as quais por vezes se tem de aceitar humilde e ao mesmo tempo corajosamente. A solução abortiva não serve para nada, porque não se pode medir as frustrações entre a situação anterior e posterior a essa prática, e sobretudo porque não é certo eliminar a vida de um semelhante só porque se está numa situação desgraçada.

Vida longa aos Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, este já aposentado! Eles representaram, no episódio da ADPF 54-STF, a vitória da vida sobre a morte, além da força vinculante da Constituição e da preservação das funções de competência reservadas com exclusividade ao Poder Legislativo. Essa atuação sintetizou todo um postulado racional de Justiça, Direito e Paz, fundamentais à construção da Pátria brasileira que exclui a cultura da morte, por tenaz que seja esse modismo perigoso e de ocasião.

Roberto Wanderley Nogueira

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