Por JosĂ© NĂȘumanne*
Sabe aquele truque do punguista que bate a carteira do transeunte incauto e, antes que ele reaja, sai correndo e gritando “pega ladrĂŁo” pela rua acima? Pois Ă© esse exatamente o golpe com que o Partido dos Trabalhadores (PT) enfrenta a pendenga judicial protagonizada pelo seu primeiro, Ășnico e eterno candidato Ă PresidĂȘncia da RepĂșblica, Luiz InĂĄcio Lula da Silva, aiatolula para seus devotos, Lulinha paz e amor para os que por ele se deixam enganar. Primeiro, eles gritam “golpe!”, como gritaram quando Dilma Tatibitate Rousseff foi derrubada pelas prĂłprias peraltices, anunciando que disputar voto sem ele na cĂ©dula nĂŁo Ă© eleição, Ă© perseguição. Depois saem correndo atrĂĄs do prejuĂzo... dos outros.
A narrativa desse golpe, que eles tratam como se fosse um contragolpe, Ă© a de que seu plano A a Z de poder tem sido acusado, denunciado e condenado e estĂĄ agora Ă espera de uma provĂĄvel, embora ainda eventual, confirmação da condenação em segunda instĂąncia. No caso, a PolĂcia Federal atuaria como se fosse um bate-pau de coronĂ©is da polĂtica, que nĂŁo querem ver o chefĂŁo de volta ao poder para desgraçar o Brasil de vez, depois do desastre que produziu a distribuição igualitĂĄria do desemprego dos trabalhadores e da quebradeira dos empresĂĄrios, esta nossa isonomia cruel. O MinistĂ©rio PĂșblico Federal seria um valhacouto de pistoleiros dos donos do poder. E os juĂzes que condenam, meros paus-mandados de imperialistas e entreguistas. Quem vai com a farinha da lĂłgica volta com o pirĂŁo da mistificação: Ă© tudo perseguição.
Talvez seja o caso, entĂŁo, de lembrar que nem isso Ă© original. Aqui mais uma vez o PT pavloviano que baba quando o padim fala recorre Ă filosofia prĂ©-socrĂĄtica do velho HerĂĄclito de Ăfeso proclamando o eterno retorno. NĂŁo queriam refundar o PT depois do assalto geral aos cofres da RepĂșblica? Pois muito bem, lĂĄ vĂŁo voltando os petistas Ă s suas origens nos estertores da ditadura. Naquele tempo, os grupos fundidos hesitavam entre a revolução armada e a urna. Optaram pela paz e prosperaram.
Os guerrilheiros desarmados Ă custa de sangue, tortura e lĂĄgrimas voltaram do exĂlio convencidos de que sĂł venceriam se assumissem o comando de um partido de massas. E o ideal para isso seria empregar o charme dos operĂĄrios do moderno enclave metalĂșrgico do ABC. Lula, que desprezava os filhinhos de papai do estudantado e os clĂ©rigos progressistas, aceitou o papel que lhe cabia de chefe dos desunidos e entĂŁo reagrupados. Afinal, sua resistĂȘncia Ă volta dos ex-armados era sĂł uma: queria dar ordens, nunca seguir instruçÔes. E deixou isso claro a ClĂĄudio Lembo, presidente do PDS paulista e emissĂĄrio do general Golbery do Couto e Silva enviado a SĂŁo Bernardo para convencĂȘ-lo a apoiar a anistia.
A conquista da mĂĄquina pĂșblica nĂŁo derramou sangue dos militantes, que avançaram com sofreguidĂŁo sobre os cofres da viĂșva e os dilapidaram sem dĂł. Viraram pregoeiros do melhor e mais seguro negĂłcio do mundo: ganhar bilhĂ”es sem arriscar a vida, como os traficantes do morro, demandando apenas os sufrĂĄgios dos iludidos. A desprezada e velha democracia burguesa virou um pregĂŁo de ocasiĂŁo: sĂł o voto vale. A eleição Ă© a Ășnica fonte legĂtima do poder. Os outros pressupostos do Estado democrĂĄtico – igualdade de direitos, equilĂbrio e autonomia dos Poderes, impessoalidade das instituiçÔes – foram esmagados sob o neopragmatismo dos curandeiros de palanque.
A polĂcia, o MinistĂ©rio PĂșblico e a Justiça tornaram-se meros (e nada mĂseros!) coadjuvantes da sociedade da imunidade que virou impunidade. A lei – ora, a lei... – Ă© sĂł pretexto. Agora, por exemplo, a Lei da Ficha Limpa, de iniciativa popular, Ă© um obstĂĄculo que, se condenado na segunda instĂąncia, Lula espera ultrapassar sem recorrer mais apenas Ă s chicanas de hĂĄbito, mas tambĂ©m Ă guerrilha dos recursos. Estes abundam, garantem Joaquim FalcĂŁo e Luiz FlĂĄvio Gomes, respeitĂĄveis especialistas.
NĂŁo importa que a alimĂĄria claudique, eles almejam mesmo Ă© acicatĂĄ-la. Formados no desprezo Ă democracia dos barĂ”es sem terra e dos comerciantes sem tĂtulos dos sĂ©culos 12 e 18, os lulistas contemporĂąneos consideram o voto, que apregoam como condĂŁo, apenas um instrumento da chegada ao poder e de sua manutenção – como a guilhotina e a Kalashnikov. JosĂ© Dirceu, que nĂŁo foi perdoado por ter delinquido cumprindo pena pelo mensalĂŁo, ganhou o direito de sambar de tornozeleira na mansĂŁo, conquistada com o suor de seus dedos, por trĂȘs votos misericordiosos. Dias Toffoli fora seu subordinado. Ricardo Lewandowski criou a personagem Dilma Merendeira. E Gilmar Mendes entrou nessa associação de petistas juramentados como J. Pinto Fernandes, o fecho inesperado do poema Quadrilha, que nĂŁo se perca pelo tĂtulo, de Carlos Drummond de Andrade. Celso de Mello e Edson Fachin foram vencidos.
Na semana passada, o ex-guerrilheiro, ex-deputado e ex-ministro estreou coluna semanal no site Nocaute, pertencente ao escritor Fernando Moraes, conhecido beija-dĂłlmĂŁ do comandante Castro. Na primeira colaboração, Dirceu convocou uma mobilização nacional no prĂłximo dia 24 de janeiro, em defesa dos direitos do ex-presidente Lula, “seja diante do TRF-4, em Porto Alegre, seja nas sedes regionais do Tribunal Regional Federal” (sic). O post, com o perdĂŁo pelo anglicismo insubstituĂvel, Ă© a sĂntese da campanha que atropela o CĂłdigo Penal e a Lei da Ficha Limpa, apelando para disparos retĂłricos e balbĂșrdia nas ruas, Ă falta de argumentos jurĂdicos respeitĂĄveis. Nada que surpreenda no PT, cujo passado revolucionĂĄrio sempre espreitou para ser usado na hora que lhe conviesse. E a hora Ă© esta.
O voto é apenas lorota de acalentar bovino. Estamos com a lei e o voto, que jå lhes faltou no ano passado e dificilmente serå pródigo no ano que vem. Mas não podemos vivenciar a fåbula A Revolução dos Bichos, de Orwell. Pois o papel de ruminantes é o que nos destinaram. Só nos resta recuså-lo.
*Jornalista, poeta e escritor
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