Pandemia, panaceia e pandemônio: a crônica de um lockdown inconsequente.

“Quando todas as armas forem de propriedade do governo, este decidirá de quem são as outras propriedades.” (Benjamim Franklin)

Este é um texto técnico que objetiva traçar algumas variáveis jurídicas acerca do atual regime de isolamento social intensificado pelos Estados federados e por diversos Municípios brasileiros, à luz do que ficou estabelecido na Ação Direta de Inconstitucionalidade-ADI nº 6341 pelo Supremo Tribunal Federal. 

Pois bem. Sob um sacralizado pretexto de intensificar o combate ao surto viral consistente na expansão do coronavírus e na suposta tentativa de reduzir o contágio para a Covid 19, a doença provocada pela virose em referência, autoridades sanitárias locais recrudesceram no país as medidas que, a seu juízo, serviriam para essa finalidade, a saber: lockdown. Sobre isto, pode-se afirmar que se trata de uma espécie de procedimento impositivo que consiste na restrição de direitos individuais e em outras práticas para a garantia do distanciamento social, entendido, por certa orientação, como apanágio de solução para o problema do surto em registro. Esse suposto categórico, porém, no que se refere ao controle epidemiológico de natureza viral, tem sido objeto de sérias refutações técnicas, à margem do costumeiro déficit operacional que remete, no Brasil, às estruturas do serviço público de saúde, máxime nos Estados mais pobres da Federação. Mas, não somente por isso: não há evidências científicas de quaisquer grandezas que afirme, com pretensão de valor universal, que o isolamento social em casos de epidemia viral elimine ou sequer reduza os efeitos do fenômeno biológico ambiental. Se for bem sucedido, o isolamento social pode até “achatar” a curva epidemiológica, retardando as contaminações, mas o ciclo viral é indefectível, vai de todo modo naturalmente acontecer, depois de instalado e só se concluirá com a denominada “imunização coletiva” ou com a aplicação em massa de vacina ao grupamento afetado, recurso, entretanto, ainda inexistente. Ressalva-se a relevância da conduta do isolamento dos grupos de risco, conquanto mais expostos e suscetíveis aos efeitos patológicos, por vezes graves, da infecção pelo coronavírus. 


De fato, a vocalização em favor do direcionamento para com os cuidados com a saúde pode ser atitude inconsistente, no caso em exame, porque não há registro científico cabal, com pretensão de validade única e universal devidamente demonstrada, que afirme que o isolamento social pura e simples, máxime nos formatos mais severos (lockdown), assegura menos contágio, menos adoecimento e menos óbito do que aqueles que uma curva viral epidemiológica já não apresentasse com uma única diferença nesse caso: o tempo de propagação do fenômeno até a conclusão do surto. O que passar disso é especulativo e não cabe, outrossim, atribuição de culpas subjetivas. Para os europeus, a propósito, o lockdown está sendo considerado uma perda de tempo com risco de recrudescimento das estatísticas mórbidas associadas à pandemia por coronovírus. (https://www.dailymail.co.uk/news/article-8351649/Lockdown-waste-time-kill-saved-claims-Nobel-laureate.html - acesso em 24/05/20).

Nesse contexto, prefeitos e governadores iniciaram programas de controle social que, de longe, extrapolam os limites do controle sanitário específico, sendo claro que algumas das medidas, por princípio, ameaçam de violação a direitos individuais consagrados na carta de princípios estatuída pela Constituição da República, a exemplo da liberdade de ir-e-vir, da liberdade de expressão e da manifestação do pensamento, da liberdade religiosa e da laicidade do Estado brasileiro, da inviolabilidade da propriedade privada e da vedação ao confisco, do obstáculo ao trabalho e da livre iniciativa, do controle da intimidade das comunicações, fomento à idealização de crimes por decreto e das respectivas medidas repressivas como prisões, conduções coercitivas, humilhações públicas, vilipêndio à dignidade do ser humano mediante pequenas práticas diuturnas de tirania e vileza atitudinal de prepostos nem sempre preparados, da liberdade de associação pacífica, obedientes os critérios sanitários não invasivos desses direitos todos, da autonomia da vontade e da intangibilidade dos contratos, da transparência quanto à fiscalização dos serviços públicos, do bloqueio de passagens e demais servidões públicas, dentre outras hipóteses tão ou mais intrigantes e juridicamente inconsistentes como o impressionante “toque de recolher” em tempo de paz, observado em algumas cidades, além de outras inusitadas “recomendações” que vêm supostamente respaldando esse cipoal de práticas desinteligentes que conflitam com a Ordem Constitucional estabelecida.


É desse modo que se passou a viver no Brasil, de inopinado, uma atmosfera de guerra ou de estado de sítio ou, ainda, de defesa nacional, interventiva, sem uma declaração compatível com esse estado da parte do Poder Executivo Federal, ouvido o Congresso Nacional (art. 57, §6º, inc. I, da Constituição), conforme também consta da Carta Política da Nação, nos termos do art. 21, incs. II [declaração de guerra], III [defesa nacional], V [decretação de estado de sítio, de defesa e intervenção federal]. Todas as mencionadas ambientações institucionais extraordinárias demandam, de acordo com a Constituição, iniciativa exclusiva da União Federal, não dos Estados-membros, nem do Distrito Federal e muito menos dos Municípios que compõem o Pacto Federativo da República (art. 84, incs. IX e X). Igualmente, o Conselho da República pronunciar-se-á em casos que tais (art. 90, inc. I, da Constituição), sem embargo do aconselhamento presidencial a cargo do Conselho de Defesa Nacional para os assuntos relacionados com a soberania nacional e a defesa do Estado democrático (art. 91, da Lei Maior). Esta omissão torna juridicamente inválida e politicamente desprezível toda manifestação que, no âmbito das unidades federadas, possam produzir abalos, ranhuras e violações aos direitos individuais, gerando-se, daí, quase sempre, condutas como que tirânicas, quando não apenas arbitrárias, e nada obstante as exigências legítimas quanto à profilaxia do surto viral em andamento. São, portanto, duas ordens de consideração a formular nas estratégias de ação política das unidades federativas quanto ao atual momento da vida nacional: 1) o controle sanitário legítimo, objeto de competência concorrente (art. 23, inc. II, da Constituição); e 2) o propósito restritivo de direitos individuais com a mesma finalidade para o que, todavia, se exige manifestação exclusiva da União Federal (arts. 136, 137, 139, incs. I à VII, e, excepcionalmente, art. 142, da Constituição da República).  

Ora, o controle sanitário ao qual governadores e prefeitos estão autorizados pela Constituição Federal e, mais densamente ainda, pela dicção da Suprema Corte do país (ADI 6341), não vai a tanto, e nem seria isso aceitável, conquanto antinômico, em relação à Ordem Constitucional vigente, nada obstante todo o cipoal de justificações sanitárias eventualmente suscitadas, máxime quando apoiadas em teses refutadas tanto por tanto pelos achados científicos universalmente aceitáveis. Seria, a rigor, uma verdadeira panaceia metajurídica, se assim fosse, a dizer: o melhor dos mundos aos ditadores! Ao que parece, ditas autoridades locais, ao darem incompreensível alargamento ao permissivo que lhes toca, interpretam mal a interpretação oferecida pela Jurisdição Constitucional, conforme a dicção normativa antes mencionada.

Sobre isto, deve-se partir dos enunciados em foco. 

O Relator da ADI 6341, pontuando acerca da legitimidade concorrencial específica (competência federativa comum para o controle sanitário no país), tornando explícita e pedagogicamente assimilável a dicção da Suprema Corte, assentou, na suma do seu veredicto, o seguinte: 
DECISÃO SAÚDE – CRISE – CORONAVÍRUS – MEDIDA PROVISÓRIA – PROVIDÊNCIAS – LEGITIMAÇÃO CONCORRENTE. Surgem atendidos os requisitos de urgência e necessidade, no que medida provisória dispõe sobre providências no campo da saúde pública nacional, sem prejuízo da legitimação concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

O STF, chancelando a decisão do Relator da matéria, formulou, outrossim, pequena alteração que deu ensejo a todo esse imbróglio pelo qual a Nação atravessa no trânsito entre concorrência competencial específica e autêntica disputa de políticas públicas de natureza sanitária com inúmeras sobreexcedências ainda não suficientemente controladas, a saber:  
EMENTA: O Tribunal, por maioria, referendou a medida cautelar deferida pelo Ministro... (Relator), acrescida de interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais, vencidos, neste ponto, o Ministro Relator e o Ministro..., e, em parte, quanto à interpretação conforme à letra b do inciso VI do art. 3º, os Ministros....

O STF, portanto, através de pronunciamento na ADI nº 6341, suspendeu, em parte, a eficácia da Medida Provisória nº 926/2020, que visa alterar procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, garantindo autonomia e autogoverno aos Municípios, Estados-membros e o Distrito Federal na edição de medidas sanitárias, objeto de competência concorrente, naquilo que comportar, evidentemente.

Está muito claro que as regras constitucionais incidíveis descrevem como concorrentes as competências da tríplice perspectiva de atuação política das entidades da Federação brasileira quanto aos aspectos relativos à saúde pública. Foi essa a dicção da Suprema Corte. Isso está muito bem delineado nos dispositivos constantes nos artigos 198 e 200, em particular, da Constituição Federal. 


No entanto, os problemas conjunturais começam daí, porque, as entidades federadas não revelam estreitamento de condutas e, antes, divergem em muitos aspectos dos cuidados para com a saúde no país, ora em relação ao dispensamento de fármacos, suscitados entre o tirocínio da clínica médica evidenciada em muitos casos e a pesquisa científica avançada (ainda inconclusiva), o tratamento nosocomial para a nova enfermidade e os cuidados para com os infectados, além dos apoios logísticos e de valorização do pessoal de saúde para com todo esse cenário, circunstâncias que envolvem pesados argumentos orçamentários e cuidados éticos redobrados, os quais remontam a uma velha problemática nacional de natureza política, que precisaria manter-se afastada, nada obstante a ausência contextual das rotinas clássicas de licitação em face da situação de emergência. Nesses cenários, reacendem-se críticas quanto à higidez dos procedimentos públicos em geral, e são fartas as críticas sociais nesse sentido. O combate epidemiológico não se faz com ideologismo nem com cientificismo, mas com atitude convergente e proativa e uniforme na direção do ideal comum sanativo do fenômeno que a todos agrava. Não pode ter sido outra a mens lege do exercício da Jurisdição Constitucional aqui reportado.

Com efeito, a tragédia da saúde pública no Brasil precede ao surto do coronavírus, mas os governantes responsáveis por isso parecem querer transferir essa responsabilidade para a própria população como se o povo fosse o responsável pela pandemia. Isso é uma enorme ignomínia política. Talvez uma completa desfaçatez capaz de gerar condutas idiossincráticas e até mesmo vis da parte de “tiranetes de esquina”, aquele pessoal que por preposição de dignitários locais desancam a destilar seus recalques no comum do povo, nas pessoas de bem e trabalhadoras deste país que passaram a ser tratadas, paradoxalmente, como marginais. É impressionante observar, por exemplo, como meros guardas de patrulhamento de bens, serviços e instalações patrimoniais dos Municípios (§ 8º, do art. 144, da Constituição) passaram a adotar, sem investidura legal e sem repressão exemplar, posturas próprias dos agentes e das autoridades policiais que exercem a segurança pública, nos termos do caput do art. 144, e seus incisos I à V, da Constituição Federal. Às vezes, guardas municipais, pelo evidente despreparo técnico, vão além como quando intentam arrancar bandeirosas brasileiras dos veículos particulares em vias de trânsito e aplicam algemas e outros golpes físicos a traseuntes e outros populares apenas pelo pretexto sanitário muitas vezes não justificado para o ato. A crônica das cidades, sobretudo após o advento das denominadas “redes sociais” aplicadas à plataforma mundial de computadores (internet), têm revelado essa notoriedade pitoresca, não fosse em si mesma uma tragédia cívica. Em decorrência desses fatores, aqui exemplificativamente ilustrados, a perplexidade social tem sido lancinante. Um frêmito de horror tem se instalado nas populações, especialmente às de classe intermediária e um sentimento de impotência parece haver se instalado nos corações e nas mentes das pessoas, privadas, porque confinadas em seus domicílios (quando existam), até mesmo do culto divino ao qual se dedicam pela tradição de religiosidade da Nação brasileira, firmada sob o signo da Cruz desde o descobrimento. A situação é mesmo trágica e disso não se remete ao surto, em si mesmo controlável dentro de determinadas rotinas, se fossem empreendidas uniformemente pela tríplice esfera federativa que a Constituição da República fecundou para o Brasil. 

Diante de todo o exposto, insiste-se que o impropriamente proclamado “endurecimento da quarentena” da parte de autoridades sanitárias locais é apenas um eufemismo para a prática do lockdown, que é um expediente reservado exclusivamente à União Federal nos casos já descritos ou em tempo de guerra. As entidades federadas têm, portanto, extrapolado os seus limites constitucionais e os governos locais agem como se soberanos fossem, além de ignorar descerimoniosamente a laicidade mesma do Estado brasileiro. Vivencia-se, desse modo, um estado de surrealismo institucional como jamais se observou na história da República. O Brasil é uma Federação, elemento essencial insuscetível até de revisão constitucional (cláusula pétrea), de acordo com o preconizado no art. 60, § 4º, inc. I, da Constituição, mas, na prática, o país se transformou numa espécie de “confederação” de Estados-membros, devido à autoinstituída autonomia que a Carta Política não lhes reservou, em absoluto, e nem a Suprema Corte lhes deferiu por algum esforço do denominado “ativismo judicial” que, no caso, não se encontra presente de modo algum. O STF, por pedagogia, apenas enfatizou a competência da União em fixar serviços essenciais, mas sem quebra da competência comum ou concorrencial, cujas regras estão presentes nos artigos 22, 23 e 24 da Constituição Federal, além de outros dispositivos já mencionados alhures.



De fato, o lockdown estadual, distrital ou municipal é manifestação antinômica em relação à Constituição da República, porque não existe um estado de sítio ou correlato de âmbito regional ou local no qual seus procedimentos poderiam ser extraordinariamente editados e feitos executar para a restrição de direitos individuais clássicos, firmados na Carta de Princípios da Constituição (arts. 5º e 6º, da Lei Fundamental). Tampouco se cogita de intervenção federal ou das Forças Armadas, nos termos constitucionais expressos (art. 142, da Carta), que a tanto se concebesse como justificável nesse propósito extraordinário. Tomar, porém, na gestão pública, o circunstancial como geral, o extraordinário como regular, o excepcional como ordinário, são atitudes que revelam, por si mesmas, inconsequência administrativa e inaptidão funcional. Insiste-se: só a União pode decretá-lo (lockdown), ouvido o Congresso Nacional, sem embargo de outras providências de planificação e legitimidade do ato de forma que possa ser tomado como juridicamente válido e politicamente legítimo e também democrático (aceitável pela comunidade destinatária). Da mesma feita, só a União pode decretar, nessa decorrência, a restrição de direitos individuais.

Por isso mesmo, a mencionada autorização formulada pela Jurisprudência Constitucional - levada a efeito pelo STF no âmbito da ADI nº 6341 - não se presta a servir como supedâneo à possibilidade de que autoridades sanitárias locais restrinjam, manu militari, direitos individuais por meio do que se pode denominar comumente de lockdown. Sobre isto, a nomenclatura é irrelevante, valendo os objetivos a alcançar e o método de como proceder a caminhada na direção desses objetivos. Isso só pode acontecer, é claro, em caso de estado de sítio ou correlatos, ou ainda em tempo de guerra. Ora, não ocorre nem uma coisa nem outra, mas mesmo que uma coisa ou outra tivesse ocorrido, só a União teria competência para decretar o lockdown, evidentemente. Esse atributo é privativo e não pode ser có-executado por nenhuma outra entidade federada, diversa da União Federal. 

O STF decidiu, em síntese, que Estados-membros, Distrito Federal e Municípios têm autonomia para disciplinar matérias de competência concorrente que caibam ao mesmo tempo à tríplice perspectiva de gestão política e administrativa do Estado brasileiro em tema de saúde, obedecido o Sistema Único de Saúde (SUS), que é descentralizado, regionalizado e hierarquizado, preservadas, desse modo, as atribuições específicas de cada esfera de governo, destacando ao presidente da República a fixação, mediante decreto, a atribuição de fixar as atividades essenciais para todos os fins de igual natureza (controle sanitário). Como visto, não é o caso do lockdown, porque para isto seria necessária decretação de estado de sítio ou correlato ou, ainda, uma declaração de guerra, que são matérias privativas e exclusivas da União Federal. Só a União pode decretar isso. Só a União pode avaliar a conveniência política e, no caso, sanitária, para a adoção de um procedimento de lockdown. Extrapola suas competências constitucionais, mesmo quando concorrentes, as unidades federadas que o decretam. 

Desse modo, ato de governador de Estado federado, do Distrito Federal ou de prefeito municipal que ameaça de violação ou que de todo violenta direitos individuais sem ser o caso de estado de sítio, seus correlatos, ou de declaração de guerra, ou de delito expresso (jamais inventado por decreto, regulamento, portaria ou recomendação de qualquer natureza ou procedência), competências que são privativas da União, marca um exercício hipertrofiado e arbitrário da autoridade local. Essa conduta, salvo melhor juízo, pode sujeitar a autoridade a enquadramento na Lei de Abuso de Autoridade, quando menos, tratando-se de governador de Estado, do Distrito Federal e seus secretários (Lei nº 1.079/1950, arts. 4º, inc. III e 7º, itens 5, 6 e 7, c/c o art. 74). Com relação aos prefeitos municipais e seus secretários, as respectivas Leis Orgânicas tratam da matéria sem embargo das Constituições Estaduais sob cuja autoridade os Municípios estão localizados e das leis gerais. 

Ao fim, uma linha de combate epidemiológico, sobretudo quando vidas estão sendo ceifadas, exige combatentes ousados para evitar - de algum modo eficaz - esses desfechos dramáticos tão mais prontamente quanto com precisão técnica necessária, baseada na experiência dos profissionais de saúde e na farmacopéia já conhecida e testada, além de uma atenta observação do fenômeno, não parecendo razoável, outrossim, no momento, abrir-se espaço longevo para pesquisadores de laboratório de ocasião, e por mais respeitáveis que sejam, os quais devem se manter trabalhando em suas expertises e aceitar que a clínica médica salve vidas enquanto isso. O Estado brasileiro, como um todo, deve ter presente essa preocupação que a todos sensibiliza, até porque essa é uma exigência constitucional implícita.

A humanidade e o Brasil, em particular, carecem urgentemente de um choque de razoabilidade e de correção. Os que cremos, clamamos desesperadamente por uma intervenção divina o quanto antes, pois tudo parece tão desprestigioso da cepa de valores que forjam a cidadania, o mérito e a boa convivência social, que já padecemos do mal da desconfiança. Forças de dominação se insinuam a todo instante por todos os cenários, por todos os meios e em todos os seguimentos, a ponto de já não podermos confiar inteiramente nas instituições que construímos ao longo dos mais de quinhentos anos de Brasil. Burocratismo, cientificismo, ideologismo, fisiologismo e outros truísmos constituem variáveis de um ambiente social inteiramente desigual e injusto, que não encontra solução de continuidade e que, por isso, estimula a banalização das relações sociais em todos os níveis com riscos tremendos como o que ora observamos na pandemia do coronavírus e de seus desdobramentos, mas não somente por isso. Uma grande Nação que não apresenta ótimos indexadores sociais e bons resultados em todo o espectro de suas perspectivas existenciais, não pode ser tão grande assim... Há graves erros a serem resolvidos no âmago de seus contextos de vida pública e privada, evidentemente. Quem disser que acredita na higidez do Estado brasileiro, simplesmente dissimula o que se passa no íntimo de seu sentimento e ignora o que se passa à sua própria volta, talvez por conveniência ou por medo de uma realidade hostil que pode lhe prejudicar ainda mais. 

O país, em razão do seu aparelhamento de pelo menos duas décadas, parece aceitar serenamente que autoridades ponham os pés pelas mãos com desfaçatez e sem cerimônia, porque não consta haver a quem demandar socorro e proteção com real chance de êxito, haja vista uma estrutura de vasos comunicantes muito consolidada que faz com que se interrelacionem subsistemas inaceitáveis socialmente, enquanto a sociedade sobrepaira inerte a quase tudo o que acontece, ou se põe à margem do que se passa de relevante na definição de seus próprios destinos. 

A Nação segue acuada, agora sob o argumento de um surto viral importante que é de fato capaz de matar muita gente. O povo, porém, desavisado, sequer sabe o que se passa e menos ainda sabe como resistir a tudo isso. Não há defensores aptos o suficiente à resistência cívica e também jurídica para inúmeros desmandos do poder, não sendo raro que o cidadão tenha de encarar o transtorno das frustrações diante de denegações recorrentes e também insondáveis. A sociedade está como que liquidada, como os cristãos primitivos atirados às feras. A história sempre se repete, guardadas as suas circunstâncias e proporções. Tudo isso causa muita tristeza e desapontamento pelos ventos leste-oeste da novel democracia brasileira, a qual se revela não tão democrática assim. A sensação de desapontamento é formidável. As carreiras públicas repetem esse cenário, quando não são de todo usurpadas pela (má) política, e isso produz consequências terríveis no dia-a-dia das pessoas, na prestação dos diversos serviços públicos. O impacto é, por vezes, avassalador. A experiência da epidemia que vivemos agora tem servido à demonstração dramática dessa variável funcional. Quantos pacientes voltaram para casa sob suspeita de Covid 19, doença grave, com recomendação de simples hidratação e paracetamol? Compreende-se o desespero de médicos impotentes de oferecer melhor assistência aos pacientes, mas não se pode aceitar que falte às unidades de atendimento à saúde pública as condições para bem servir à população brasileira. O cidadão sente-se impotente também para fazer qualquer coisa de positivo e que possibilite avançar realmente na evolução civilizatória em terras de Santa Cruz. O medo é a atmosfera de tudo. A atmosfera é de fato infernal. O lado bom de tudo é que estamos podendo separar joio de trigo, espíritos estão se revelando claramente, os bons estão acuados e os maus se manifestando descerimoniosamente. As brigas políticas que se sucedem, sobre se tratarem de autênticos pandemônios morais, refletem o estágio de nosso desenvolvimento social, rectius: o nosso próprio subdesenvolvimento. 



Ora, não é correto acreditar e fazer de contas que está tudo bem, pois não está. As pessoas, sobretudo as menos socialmente favorecidas, ainda estão morrendo à míngua de melhor tratamento e em razão do sucateamento da saúde, situação que não começou agora. É antiga e conhecida. Todos os dias o sistema de Justiça tem de dispensar alternativamente fármacos e tratamentos de saúde, espaços nosocomiais e serviços específicos para cidadãos não assistidos pelos SUS em razão de alguma insuficiência operacional, talvez por falta de vontade política para o dispensamento respectivo. Curiosamente, as Procuradorias de Justiça resistem, em regra, a tais dispensamentos judiciais e isso parece incompreensível do ponto-de-vista constitucional e dos argumentos que se elevam para justificar o tal lockdown nos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios. Um paradoxo. Ademais, quantos não vêm a óbito por falta de cuidados em Unidades de Terapia Intensiva e não dizem respeito ao problema do coronavírus? Quantos já não contraíram a infecção maldita por hospitalização indevida? Quantos deixaram de ser medicados por não disporem de testes de verificação? Quantos ainda não tiveram de ser submetidos à dramática “Escolha de Sofia”, por falta de aparelhamentos em número suficiente para atender à demanda por saúde pública? Enfim, temos uma pandemia que mais parece um pandemônio, passando por uma verdadeira panaceia que mais não significa do que tragédia. Enquanto isso, a classe média, acuada e impotente, pouco avança. 

A Constituição virou como que uma alegoria carnavalesca. Cumpre-se na medida das conveniências. O mais é negligenciado. Pior: impunemente. No Brasil tropicalístico, em plena pandemia, aliás, já declarada pelos organismos internacionais e pela própria União Federal, se fez feérico carnaval com o adminículo de algumas das mesmas autoridades locais que agora andam desesperadas para confinar sem uma razão mais eloquente e tecnicamente aceitável os cidadãos. Agora querem pular e tripudiar sobre a liberdade das pessoas. Nada mais inconsequente. Certamente, há quem se locuplete com tudo isso em todas as pontas da atividade econômica, máxime em face da contingência excludente do regime licitatório para aquisições públicas em tempo de calamidades. Não há a quem apelar com chances de real sucesso ao reconhecimento dos direitos. A Justiça no Brasil tornou-se um dado acidental. Não resulta da higidez do seu sistema, mas da autoridade moral dos seus juízes. Quem bate às portas do Poder Judiciário entre nós, adota como primeira providência saber sobre o perfil do magistrado eleito pela distribuição para conhecer do seu pedido, independente da maior ou menor qualidade do seu direito, do bom ou do mau prognóstico de sua pretensão. Isto reflete uma grave distorção, porque o Estado de Direito se revela, assim, como que submetido aos humores de seus próprios agentes. Trata-se de uma inversão da lógica do próprio Estado democrático, baseado no império da razão e não na espiritualidade dos operadores de momento. Todas as estruturas do poder estão aparelhadas. Os sistemas de captura de seus agentes sofreram e ainda sofrem severas ranhuras para mais ou para menos que replica nos resultados práticos obteníveis no serviço público correspondente, e assim também na saúde pública. Quando uma ou outra voz se eleva, será hostilizado e o seu trabalho desfeito em dois tempos. Sendo bem sincero: isto não é uma sociedade; é um campo de concentração.


É mesmo assim que pandemia (epidemia estendida), panaceia (solução para tudo) e pandemônio (balbúrdia), tudo junto e misturado, acabam servindo de culto à polissemia como retórica para o proselitismo totalitário, ainda que em vias embrionárias. Todo conceito e toda atitude começa pela nomenclatura. Sem precisão terminológica, no entanto, a nomenclatura serve ao desaviso e à confusão intelectual entre razão descritiva e razão prescritiva. Sem norte metodológico e atitudinal, os auditórios seguem como manada, sujeitos à opressão, mesmo quando dissimulada de virtudes de quaisquer naturezas, sanitárias inclusive. 

Em conclusão, acredita-se que os governos locais não têm competência constitucional para decretar lockdown com restrição a diretos individuais, somente tributável à União para os casos de estado de sítio, de defesa intervenção ou em tempo de guerra. No Brasil, porém, a lei parece ser tratada como fanfarra sob os olhares atônitos de destinatários pouco esclarecidos quanto ao agora e ao porvir. Enquanto não educarmos a todos, inclusive politicamente, quebrando-se os monopólios e a interferência das elites e das oligarquias no país, vai ser assim. 

Este foi, no entanto, o terreno em que Deus nos semeou e espera que germinemos. Esta é a nossa tarefa. Vamos em frente com Fé!


Deborah Prates: Deborah Prates apoia a inclusão das PCD's no STF
Roberto Wanderley Nogueira
Juiz Federal 
Professor de Direito UFPE

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2 Comentários

  1. A saúde pública já se encontrava em colapso antes do pandemônio. Este veio só fazer de conta que tínhamos saúde coletiva. Sim ou não?

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  2. Ah, pela ordem: em bom cearensês, essa história mal contada de "Lockdown" = confinamento forçado!

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