“Juiz de garantias”: sutileza paquidérmica.

Sem dar cabo da corrupção sistêmica toda construção econômica nunca passará de “castelo de areia."

A Constituição Federal não previu a categoria funcional do chamado “Juiz de Garantias” (art. 92) para a estrutura do Poder Judiciário. Essa matéria está reservada ao legislador constituinte. Por isso que a lei ordinária não poderia simplesmente regulamentá-la, antes de uma reforma constitucional específica que a fundamentasse como dispositivo próprio do sistema jurídico vigente (Lei nº 13.964/2019). É, pois, formalmente inconstitucional essa nova invenção de nossos representantes legislativos e do Chefe do Poder Executivo, que a sancionou.

Trata-se também de uma inconstitucionalidade material por afetar o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais no que se refere à persecução penal (art. 144, § 7°, CF), especialmente para os delitos praticados de modo organizado (orcrim), para cujo combate a lei estabeleceu regras consubstanciais à complexidade desses crimes (Lei nº 12.850/2013).

Adicionalmente, a nova figura jurídica, essencialmente teratogênica, implode de vez, sem justificativa razoável, uma tradição jurídica clássica entre nós: a identidade física do Juiz (art. 339, §2°, CPP). Com o enredo, distancia-se da autoridade o seu foco institucional, ou seja, a própria pesquisa da verdade dos fatos, que passa a sofrer contaminações em paralelo, ferindo de morte a autonomia jurisdicional. A autoridade judiciária, e não duas ou três (salvo recurso), é o destino natural da produção probatória. Todos os operadores processuais dirigem-se ao convencimento do Juiz Natural, que não se fraciona legitimamente. Mesmo do ponto de vista estritamente lógico, duas cabeças pensam duplamente a respeito de um mesmo objeto, ainda que esses pensamentos coincidam. A bifurcação do papel julgador é, portanto, um disparate lógico, porque rarefaz o conhecimento da verdade acerca dos objetos da lide e compromete a “Actio Trium Personarum”.

A quantas anda o experimentalismo tupiniquim, traduz uma especulação incalculável. O Brasil, conquanto ainda fortemente subdesenvolvido, devido às graves desigualdades sociais que padecemos, ainda não conta com a inteira noção do que signifique realmente um Estado de Direito. Nossos contextos regulamentares são quase sempre inventivos e ativistas, a depender do gosto e dos humores de nossos governantes (sentido amplo), aliás, miseravelmente escolhidos em ruidosos e ruinosos processos eleitorais.

Fracionar o processo penal ou de algum modo embaralhar o seu meio-de-campo não é conquista alguma da cidadania, mas um brinde à delinquência, sobretudo à macrocriminalidade, que se reorganiza, resiliente e teimosamente, em face dos esforços da sociedade para reprimi-la. Desse modo, a pior tragédia que se pode divisar do atual contexto normativo instaurado pela Lei nº 13.964/2019, formal e materialmente inconstitucional, continua sendo a impunidade, agora revestida do sofisticado implemento ao qual, com sutileza paquidérmica, denominaram de “Juiz de Garantias”.

Dr. Roberto Wanderley Nogueira
Juiz Federal
Professor de Direito da UFPE

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1 Comentários

  1. Como sempre, observações lúcidas e pertinentes do nobre articulista, agora sobre essa esdrúxula figura do "juiz de garantias", que não possui estofo constitucional, como brilhantemente exposto.

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