Coisa julgada e o momento da execução penal.

Há um inflamado debate público em torno desse assunto, que é crucial aos estudos penais e ao equilíbrio das relações humanas nesse campo da vida em sociedade. A propósito, o Estado de Direito é fecundado em torno de regras fundamentais que controlam esse equilíbrio capaz de contrabalançar os direitos individuais e o interesse público relacionado com a prevenção e a repressão criminal da qual não se pode dispensar, porque isso seria autofágico. O Estado de Direito é um Estado de liberdades, por isso mesmo não aspira à própria desconstrução e nem permite que forças subsistemáticas da ordem jurídica ou obscurantistas o suplantem, ainda quando essas forças sejam articuladas pelos seus próprios agentes públicos e/ou políticos. Nesse sentido, o Estado submete-se ao próprio Estado (de Direito).

Pois bem, a coisa julgada traduz um capítulo essencial desse quadro, o qual exige ser bem escrutinado pela Nação.

Com efeito, a partir da segunda instância criminal, a coisa julgada ('res judicata') é ordinária, porque não há nada mais a reformar quanto ao mérito de fato da condenação. Tampouco se produzirão provas depois disso. A matéria de fundo se houve, assim, consolidada. A presunção, a partir daí, é de culpa, não de inocência. 

Por isso mesmo, não há efeito suspensivo às decisões que tais, quando delas se recorre ao STJ, em sede de recurso especial, e/ou ao STF, em sede de recurso extraordinário. 

Com efeito, o duplo grau de jurisdição constitucionalmente exigível à efetivação das penas, em geral, se esgota na segunda instância. Aliás, não há uma terceira ou quarta instâncias, senão jurisdição especial e extraordinária para exame da legalidade abstrata infraconstitucional do caso concreto (cujos elementos empíricos não podem ser revisitados) e das normas constitucionais invisíveis à espécie em causa. 

Numa hipótese quanto na outra, não há possibilidade de reorientação do julgado de origem em face dos elementos de fato da causa, de tal sorte que a apuração da culpa do agente do crime não tem como ou porque ser invertida para a hipótese de inocência. 

Com efeito, do ponto de vista estritamente processual, que é o que interessa, a coisa julgada penal estará tecnicamente formada a partir do momento em que a imputação criminal restar decidida em definitivo. O Pacto de São José da Costa Rica e todas as legislações civilizadas (perdão do pleonasmo) que integram o concerto das Nações, incorporam o duplo grau de jurisdição como paradigma desse Instituto (coisa julgada penal). Por isso dizer-se que uma condenação criminal adotada em segunda instância é coisa julgada ordinária. Os conteúdos da imputação decidenda já não podem ser mais alterados. Outras variáveis processuais que se debruçam sobre uma causa assim decidida, outrossim, jamais afetarão o mérito da matéria, a imputação em si, mas aspectos abstratos e formais do devido processo legal que nada têm a ver com a justiça do julgado. É o que acontece nos recursos especial e extraordinário, os quais prolongam o devido processo legal, segundo abordagens abstratas de lei federal e de normas constitucionais aplicáveis, respectivamente, mas não se prestam para revisar a anterior aplicação da lei penal ao caso concreto. Desse modo, o culpado sempre o será, até para fins de responsabilidade civil e patrimonial decorrente do ilícito (ação civil 'ex-delicto'), ainda que possa, no exame complementar, resultar isento de cumprimento penal. Convém lembrar que isenção de pena não é a mesma coisa que exclusão de ilicitude. O STJ e o STF não podem dizer que o culpado é inocente ou que o inocente é culpado, salvo nos casos de suas respectivas competências originárias.

Logo, a execução penal respectiva deve ser desde então iniciada, 'ex-vi-legis'. Trata-se de premissa essencial do penalístico.

Finalmente, observa-se ainda que a visão literal e não sistemática do conceito de coisa julgada penal exclui do raciocínio o seu caráter epistemológico, teórico-científico, que é básico para a compreensão dos enunciados jurídicos e dos sentidos que convergem para as suas respectivas funcionalidades. Nem sempre a Escola da Exegese afirma segurança jurídica alguma - o mínimo de Justiça preconizado por Kelsen -, senão a visão sistemática dos objetivos que demandam classificações. É o caso.

Ora, para entender adequadamente o Instituto da coisa julgada penal, será sempre necessário tomá-lo à luz do próprio Penalístico, não de qualquer outra plataforma jurídica ou, menos ainda, metajurídica. Sobre isto, se destacam diversas variáveis, dentre outras que a doutrina contempla: coisa julgada ordinária, coisa julgada especial, coisa julgada extraordinária, coisa julgada soberana. Entender com precisão cirúrgica qual a incidência de cada uma dessas variáveis aos casos concretos é o que de fato aperfeiçoa o sentido prático e funcional dessa incidência. 

Portanto, uma interpretação literal e linear de um conceito/categoria geral do Direito que todavia apresenta variáveis é arbitrar, por reducionismo, o seu significado para muito além do que preconizam as fontes formais do próprio Direito. Paradoxalmente, o intérprete estaria, ali, formulando uma exegese arbitrária, espiritualizada. Não é o caso de muitos que assim se posicionam com honestidade intelectual, mas é bem verossímil que outros tantos em quantidade não desprezível o façam por nítidas razões corporativas.

Em síntese, o argumento jurídico estrito que conforma a atual orientação jurisprudencial sobre o mais razoável momento  da execução das penas ao espírito da Constituição da República é bem esse que ordena que as normas do Penalístico tenham máxima efetividade por medida de superior política criminal.

Roberto Wanderley Nogueira
Juiz Federal 
Professor de Direito na UFPE

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4 Comentários

  1. Parabéns ao articulista, Magistrado ímpar, pelas suas sensatas ponderações!

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  2. Valeu, Roberto! Precisamos de um Direito e de uma Jurisprudência verdadeiramente cristãs e evangelizadoras.

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