Paraíso dos devedores e de acusados.

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Vejamos aqui alguns dos mais importantes efeitos, formalmente legais, muito embora material e constitucionalmente questionáveis, associados à denominada Lei do Abuso de Autoridade, quanto à ameaça de enquadramento penal do Juiz que sobreexcede a bloqueios de ativos do devedor de qualquer natureza (arts. 36, e demais, da Lei nº 13.869, de 05/09/2019). No mesmo naipe, outros dispositivos oferecem o mesmo tratamento autofágico à autoridade judicial, ministerial e policial em tema de persecução para o crime. Este artigo tratará da primeira questão, sobre a possibilidade objetiva de atos de constricção judicial serem tomados como condutas penais da autoridade processante.

Em primeiro lugar, importa ressaltar que estamos diante de uma aberração legislativa, e para o Juiz prudente não há sequer um dilema nisso. Basta deixar de aplicar a penhora 'on line' e outras medidas para os ativos bancários, além de outras garantias patrimoniais, que na sequência virá uma lei que a revogará ou o próprio STF, ainda que tardinheiramente, declarará a respectiva inconstitucionalidade. 

É inteligente usar a própria lei absurda para a sua rápida revogação, dando-lhe, de certo modo paradoxalmente, eficácia máxima, e sem temperos. Afinal, é o pescoço do Juiz que está em jogo e toda burrice tem os seus limites. Juiz algum jurou descumprir a lei. Neste caso, a lei foi editada justamente para que o Juiz não a aplicasse, sob risco de pena. Ora, quem relativiza o iníquo, pratica iniqüidade também e se enreda na própria ignorância.

Eis a ideia: mostrar ao sistema o quão estúpido é o seu funcionamento e deplorável a sua inteligência, pois não se pode pedir aos Juízes, já privados da imunidade judiciária, que violem a lei penal e cometam crime para satisfazer o interesse da parte. Na realidade, o Juiz que não pode decidir, simplesmente não é Juiz coisa alguma (Nicklas Luhmann). Esse é, no entanto, o papel que reservaram aos Magistrados brasileiros aqueles dignitários da República que ocupam as cadeiras do Congresso Nacional com o adminículo do poder Executivo, o qual deixou de vetar no todo esse abuso legislativo. Façamos, então, naturalmente, que provem do próprio veneno e da própria audácia. Terão de correr atrás da própria bobagem. De fato, em poucos dias a maioria dos bandidos estarão soltos, os devedores livres de suas obrigações e todo, ao fim, procurando ajustar suas contas pelas próprias mãos. É a barbárie se insinuando, se o infame diapositivo não for revertido pelas vias judiciais próprias (controle concentrado de inconstitucionalidade). O generoso leito pode escrever o que estou lhe dizendo aqui.

Que Juiz nenhum se deixe tratar como personagem de polichinelo ou estulto diante da estultícia do poder político e de suas maquinações de autodefesa, filhas da vilania. Se não querem Juízes, então que não tenham Juízes todos os que compõem a sociedade que escolhe parlamentares como os que ela os tem no momento.

Com efeito, é melhor indeferir de plano os pedidos de constricção patrimonial do devedor, a qualquer título, e deixar que o Tribunal assuma o risco da idiossincrasia estabelecida nessa lei deletéria e infamante. Um Juiz não pode ser instado a realizar o antidireito e aceitar ser enquadrado em lei penal - sem dolo nem má fé - como um cordeiro imolado. Às decisões judiciais não comporta responsabilidade objetiva, consoante ressalta dessa lei estranhíssima. Para julgar, a função respectiva se reveste da imunidade constitucional necessária à produção de decisões que lhe são próprias. A atividade judicial é de algum modo heróica, mas não a esse ponto tremendamente paroxístico de exigir do agente político da jurisdição a sua própria desconstrução, mediante atitude autofágica, suicida. Isso não seria jamais uma manifestação própria de cumprimento do dever, mas uma expressão de burrice lancinante elevada a altos decibéis da parte de quem assim procedesse por algum motivo menos esclarecido, talvez até mesmo torpe.

Na prática, o que vai acontecer é o seguinte: anomia ética, estado pré-barbárico! No entanto, a tal Lei do Abuso de Autoridade é, sobretudo, INCONSTITUCIONAL, formal e materialmente falando, porque defenestra, na origem, o princípio da máxima eficácia na persecução criminal contida na Lei nº 12.850/2013, para a repressão aos crimes organizados, num sentido, e também e principalmente porque importa na criação de tipos penais abertos, capazes de corporificar hipóteses de crimes de hermenêutica contra autoridades processantes. Trata-se de um absurdo lógico já pacificado pelo pensamento jurídico contemporâneo ocidental. Não há sequer o que indagar quanto a isso, mas mesmo assim o Congresso Nacional insistiu em retroceder na história, apesar da inconstitucionadade explícita do referido dispositivo. Crime de hermenêutica, aliás, é um conceito puramente arqueológico do penalístico e não reúne a mínima atualidade jurídica, antes refletindo atavismo. Só os heróis e os santos arriscarão a própria pele para exercer aquilo que se supõe retamente a autoridade que lhe toca sob tais condições. Não é normalmente possível estimar que um ato de construção patrimonial sobre bens só devedor seja ou não excessivo “a priori”. Com relação ao bloqueio de ativos financeiros pelos sistemas e protocolos ficados pelo Conselho Nacional de Justiça, temperar a penhora ou o bloqueio é impossível, porque essas rotinas alcançam o que encontrar pela frente em termos de recursos financeiros. Só depois é que o Juiz vai liberando o que vier a se considerar excessivo. Acontece que nesse caso, o infeliz Magistrado já terá delinqüido, acordo com a Lei que o induz a crime de hermenêutica. O paradoxo maior reside na própria condição funcional da autoridade que encerra o poder-dever de produzir decisão que, todavia, arrisca ser um ato criminoso, em face da própria decisão e não de nenhum elemento subjetivo que resulte de de dominou má fé. É mais do que um paradoxo. É de fato um dispositivo de todo inconsequente que não alcança o seu sentido de unidade na ordem jurídico-constitucional. Trata-se de regra que reúne um conteúdo materialmente impossível, sendo, portanto, juridicamente inválida, por inconstitucionalidade e obsolescência jurídico-histórica. Cuida-se, pois, de um completo despropósito que deixa mal os seus editores. Impressiona divisar que as Casas Legislativas da União não contém com assessorias qualificadas o bastante para evitar esse tipo de transtorno que vai acabar se voltando contra a própria agência legislativa que o estabeleceu.

Dir-se-ia mesmo que a Lei do Abuso de Autoridade traduz uma aberração legislativa, produto de ações desavisadas e inconseqüentes da parte de seus promotores, obra que se afirma como tresloucadas e sem a menor plausibilidade técnica e/ou ética de valer constitucionalmente, embora por enquanto esteja a produzir efeitos deletérios, tamanha a sanha destrutiva do edifício da República e da separação dos poderes que a tal Lei contém e preconiza. Sua disciplina favorece às ilegalidades em geral e sugere a impunidade de meliantes, ao mesmo tempo em que valoriza a irresponsabilidade de devedores contumazes, submetidos ao mesmo benefício que compromete o devido processo legal pelo amesquinhamento do poder das autoridades processantes: 'Contradictio in extremis'! 

Mais do que tudo, a borolenta Lei do Abuso de Autoridade, antes de coibir abusos, investe contra o livre funcionamento dos poderes da República e, por isso mesmo, traduz um expediente atávico, claramente conspiratório ao Estado de Direito. Com efeito, não se trata de um instituto contemporâneo, restando em desconformidade com a consciência jurídico-política hodierna.

Cumpre destacar, ainda, que, embora conceitualmente se possa exprimir alguma insurreição quanto ao estranhíssimo dispositivo legal, mais afeito a uma cilada que a uma norma jurídica propriamente dita, não se propugna aqui qualquer manifestação antijurídica, estranha ao Direito Positivo, mas antes a confirmação da vigência e da eficácia da lei que, embora criticada, vai ser rigorosamente cumprida pelo julgador, enquanto não for declarada inconstitucional. Sua atecnia e obsolescência é que vão se encarregar de esgotá-la no tempo e no espaço, sem maiores delongas e/ou discussões. Realmente, o assunto não demanda alta indagação, porque salta aos olhos e é formidavelmente trivial.

Finalmente, o pedido de bloqueio de ativos do devedor no devido processo legal passou a configurar um pedido juridicamente impossível, porque não se pode requerer ao Juiz que ele viole a lei penal, para o bem ou para o mal, ou sequer que permaneça nessa continuidade para os casos de decisões já adotadas anteriormente à vigência da Lei em comentário, se o período de “vacatio legis” de 120 dias também se escoar e até lá a lei não for invalidada. 

Por mais absurdo que seja o tal tipo penal, é de fato o que prevalece no momento e deve ser observado em nome da unidade de sentido da Ordem Jurídica, como um todo, ainda que "pereat mundo" e enquanto o assunto não for conhecido pelo controle concentrado de inconstitucionalidade específica. 

No meio tempo, cumpre ao Juiz que se encontrar em alguma dessas situações e para evitar ser no mínimo investigado pela prática arqueológica de crime de hermenêutica, ressuscitado no Brasil pela Lei nº 13.869/2019, proceder consoante uma destas duas fórmulas, além de uma recomendação expressa, a saber: 

1) Primeiramente, adotar despacho para não conceder toda e qualquer medida constrictiva de caráter patrimonial ou limitativo da liberdade que, em não sendo possível, desde logo, mensurá-lo matematicamente, possa vir a ser interpretado como sobreexcedente.

2) Um outro despacho para revogar toda medida que, nos mesmos termos, tenham sido expedidas pelo juízo anteriormente ao advento da mencionada Lei do Abuso de Autoridade, haja vista o caráter continuativo da constricção em comento findo.

3) Facultar expressamente à parte interessada o direito ao recurso às Instâncias Superiores.

Ora, nada melhor do que a Antropologia nacional para explicar esses dislates macunaímicos que de quando em vez somos forçados a testemunhar, e sofrer, no contexto de tantos carnavais, de tanta desigualdade e de tanta mendacidade. 

Outrossim, o inferno está cheio de boas intenções. A lei impõe responsabilidade objetiva ao Juiz que eventualmente errar no seu veredicto de constricção patrimonial de devedores e sobre a liberdade de acusados, mas errar no Juízo só se pode aferir depois da ocorrência. Essa margem de erro foi negligenciada idiopaticamente pela lei da qual se espera o reconhecimento de inconstitucionalidade, por afronta aos fundamentos constitucionais da função do Poder Judiciário e resultar de clara hipertrofia de um poder político sobre o outro. É uma abstração.

Nada obstante, o Brasil vai superar as suas mazelas tão cronificadas, mas ainda vai levar um tempo considerável para isso, devido ao estágio atual de desenvolvimento social e político do povo brasileiro.

Roberto Wanderley Nogueira
Juiz Federal do Tribunal Regional Federal
Professor de Direito da UFPE

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2 Comentários

  1. Indubitavelmente, a falta de educação do nosso povo atravanca o seu crescimento social e político, tornando aparentemente impossível a superação das " mazelas cronificadas" do nosso país. Mas como a paciência tudo alcança, a ordem é continuar a combater o bom combate, sem perder a esperança, diria até, a certeza, de que um dia "fé e justiça se abraçarão." Lutem, falem, escrevam, ajam com critério e bom senso. Também no Brasil, minha gente, " fé e justiça se abraçarão. Podem até achar graça, mas é o que sente uma velha senhora.

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  2. Disse tudo. Juízes são profissionais qualificadíssimos que dedicam uma vida ao mister, subtraem-se às famílias, restringem-se socialmente para dizer o direito com isenção, mas daí a ao aplicar a lei para a justiça, eles mesmos se verem na corda-bamba de uma eventual injustiça, justamente por obra da “lei”, prejudicando uma carreira, a própria subsistência e até a liberdade, bem como indiretamente a sua família, não exijam porque não é factível! Excrescências têm limites!

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